domingo, 24 de janeiro de 2010

Artigo publicado DP, 24 jan 2010

O INEXORÁVEL FIM DO BUCOLISMO

Clóvis Cavalcanti

Economista e pesquisador social

Na edição de 17.1.2010, o DIARIO publicou interessante matéria intitulada “O Fim do Bucolismo de Casa Forte”. O assunto é oportuno e remete à violenta deformação da paisagem recifense por aquilo que a matéria chama de “avanço do concreto”. Mas vale lembrar que, no domingo, 30 de dezembro de 1923, Gilberto Freyre, então com 23 anos, já escrevia aqui no jornal: “precisa o Recife defender-se contra o perigo de virar tristemente um esqueleto de cimento armado”. Ora, se isso se manifestava há quase nove décadas, que se pode dizer do que acontece hoje? Que Gilberto Freyre tinha toda a razão. Não era tanto a transformação da paisagem daquele momento que o assustava, e sim o que vinha no seu rastro. Isso se percebe em texto de Freyre que saiu no DIARIO em 13.11.1924, no qual é ressaltada “a terrível mania” da modernização, entendida então com “europeizar”, mas já rumando, como Freyre mesmo assinalava, para “americanizar“. Deve-se aos Estados Unidos o crescimento vertical das cidades, fenômeno que atinge níveis absurdos em Dubai (uma economia atualmente trôpega). É assustadora a tendência assumida no caso de Casa Forte, porque essa área recifense conservava um perfil ameno, de boa qualidade de vida, além de não possuir desenho urbano para a expansão que hoje se verifica. Sua paisagem agradava ao visitante, servindo de exemplo do que deveria ser nossa urbanização. De modo triste, porém, no bairro, o que se vê é sua graciosa praça, que tinha a igreja matriz ao centro e era cercada por árvores, tornar-se irreconhecível.

O modelo de desenvolvimento aí consubstanciado não tem que ser uma condenação inevitável. Mesmo nos Estados Unidos, os espigões tendem a se concentrar em espaços limitados, realidade ainda mais visível nas cidades da Europa (onde a densidade demográfica é maior). O quadro recifense se agrava pela absoluta mediocridade da arquitetura que concebe suas modernas formas de habitação. Para todo lado que se olha hoje, o cenário é desolador; acabrunha. As lamentáveis torres dos cais de Santa Rita servem bem de ilustração do fenômeno. Quem pára para admirá-las como obras de inteligência superior? No entanto, a arquitetura purista da Visconde de Suassuna é capaz de atrair, assim como o conjunto do Poço da Panela e alguma casa que ainda resta na Boa Vista, nos Aflitos, no Espinheiro, no pátio de São Pedro. Sem falar em monumentos como o casarão da praça João Alfredo, várias igrejas, o mercado de São José, o mercado de Casa Amarela, a sede da Fundação Gilberto Freyre. Edificações como essas é que atraem os olhos do viajante.

É natural que as pessoas reclamem do que está acontecendo. Apesar de ter o privilégio de residir num dos locais de melhores cercanias, do ponto de vista estético, de Olinda, hoje me incomoda a visão à distância (10 km) das torres do cais de Santa Rita. Elas conspurcam a paisagem olindense, apesar da lonjura, por sua aparência espectral. No caso de Casa Forte, a proximidade da deformação paisagística é motivo óbvio de desagrado. Isso foi constatado na matéria do DIARIO de 17 deste mês. Diz a notícia que uma moradora de edifício de 26 andares do bairro teria ido para Casa Forte “em busca do bucolismo do lugar”. E que, morando num arranha-céu, “espera que a paisagem que se descortina pela sua varanda não seja tomada por edifícios como o seu”, o que a faria perder toda a ventilação. Essa é uma visão que diz bem por que a cidade se deforma. A moradora em questão quer seu prédio de 26 andares e mais nenhum outro. Como impedir que a massa deseje a mesma coisa e se tenha, ao fim, toda uma deformação dolorosa do ambiente? Registra a matéria do DIARIO que a moradora “já chega a gastar 20 minutos de carro para percorrer uma distância de menos de um quilômetro do seu apartamento até o trabalho na Avenida 17 de Agosto”. Carro para andar menos de 1 km? Por que não ir a pé ou de bicicleta? Está explicado o motivo pelo qual a cidade não pode resistir ao “avanço do concreto” e ao fim do bucolismo.

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